Condições de Trabalho e o "Breque dos APPs"

         

O desemprego tem levado muitas pessoas a procurarem alternativas de renda seja em ambiente formal (emprego de carteira assinada), seja no ambiente informal. No entanto, algumas situações são de condições de trabalho muito precárias e de baixa remuneração. Essas considerações problema sobre as condições de trabalho já se apresentavam antes mesmo do início da pandemia causada pelo COVID-19, pois são em parte resultado dos impactos da reforma trabalhista, ou ainda, da chamada “uberização” do trabalho. Pode-se dizer que a crise sanitária e econômica oriundas da presença da COVID-19 agravaram o contexto de forma importante.

Em tempos da pandemia, o isolamento social se tornou um privilégio de poucos com #Fiqueemcasa, não se contamine e, qualquer coisa, peça para entregar. Os serviços de entrega, nestes tempos difíceis, tornaram-se atividades essenciais e cresceram exponencialmente. Como exemplo, a plataforma de transporte de alimentos iFood, que opera em mais de 1 mil cidades em todo o Brasil, recebeu em março de 2020, cerca de 175 mil inscrições de candidatos interessados em atuar como entregadores da plataforma ante os 85 mil de fevereiro do mesmo ano. Completamente expostos ao risco de contaminação pelo coronavírus, entregadores de aplicativos estão divididos entre a necessidade econômica, os riscos de atividade e uma “parceria” desigual. Pode-se dizer que o trabalhador por aplicativos do século XXI tem a mesma liberdade do trabalhador da 1ª Revolução Industrial: trabalhar em ambiente de risco 10 a 12 horas por dia para sobreviver ou não trabalhar (MELO, 2020).

Essas condições ficaram ainda mais expostas no dia 1º de julho, na greve dos entregadores de comida que movimentou as ruas de várias capitais brasileiras e as redes sociais chamada de “#Brequesdosapps”. A paralisação foi chamada por colaboradores de empresas como Rappi, Loggi, Ifood, Uber Eats e James. Os trabalhadores fizeram greve por melhores condições de trabalho, medidas de proteção contra os riscos de infecção pelo novo coronavírus e mais transparência na dinâmica de funcionamento dos serviços e das formas de remuneração. Os pedidos principais incluem um aumento no valor mínimo da corrida, seguro contra roubo e acidente, e auxílio-pandemia, incluindo não só a distribuição de EPIs (equipamentos de proteção individual), como também licença remunerada em casos de contaminação pelo Covid-19.

É importante considerar que o crescimento do número de desempregados durante a pandemia criou um movimento de migração para serviços de entrega e mobilidade urbana e isso resultou num cenário mais competitivo. Entretanto, um estudo da Remir (Rede de Estudos e Monitoramento da Reforma Trabalhista) constatou que 59% dos entregadores faturaram menos nesse período de isolamento social, mesmo que a demanda por entregas tenha aumentado consideravelmente. De acordo com o documento, esse fenômeno aconteceu porque os aplicativos distribuíram mais entregas entre os trabalhadores, mas sem aumentar as taxas.

Várias pessoas e entidades como associações e sindicatos apoiaram à paralisação nacional #brequedosapps e ao trabalho digno nos serviços públicos básicos e urbanos. Considerou-se que essa categoria, formada majoritariamente por jovens, periféricos e negros, têm cada vez mais ocupado um papel relevante nas dinâmicas econômicas e de mobilidade urbana nas grandes cidades, e têm se revelado ainda mais importantes na atual conjuntura da pandemia. Os entregadores têm contribuído com o funcionamento de estabelecimentos que não podem abrir as portas, assim como viabilizado a entrega de alimentos e produtos essenciais à população. Destaca-se assim que essa classe de profissionais tem colocado diariamente suas vidas e de suas famílias em risco para servir a população.

No entanto, cabe observar que essa mobilização dos entregadores traz à tona alguns pontos da reforma trabalhista que tem uma lógica de desconstruir ou mitigar o sistema de direitos e de proteção social e tende a expor o trabalhador a uma condição de maior vulnerabilidade. Com isso, acaba por submetê-lo a uma dinâmica de intensificação da concorrência do mercado, fazendo-o aceitar ocupações e condições de trabalho mais precárias e até sem direitos, como o caso do trabalho supostamente “autônomo”. Além disso, também dificulta o acesso ao sistema de seguridade por meio de uma aposentadoria digna, do atendimento pelo sistema de saúde pública, do acesso aos benefícios em razão de afastamento involuntário do mercado de trabalho ou pelo direito ao seguro desemprego (KREIN; DE OLIVEIRA, 2019).

De tudo isso, Krein e De Oliveira (2019) observam que, resulta um mercado de trabalho mais segmentado, com uma pequena parte ocupando atividades socialmente reconhecidas e a maior parcela trabalhando em atividades que exigem pouca qualificação e oferecem baixos salários. Ou seja, as ocupações existentes são determinadas pela dinâmica econômica vigente e pelas opções políticas voltadas a responder aos desafios econômica e socialmente constituídos. No contexto atual, de crise estrutural do emprego, as políticas prevalecentes concorrem para penalizar o trabalho e favorecer o capital. Resta para as maiorias o trabalho precário, estratégias de sobrevivência, e não como meio de realização profissional. A Reforma se insere neste contexto, indicando às pessoas que a única forma de integrar o mercado de trabalho é participando de uma concorrência predatória em que as ofertas são escassas, as formas de proteção rareiam e a remuneração é insuficiente.

Contudo, o que se observa, por exemplo, nas ruas de São Paulo é que existem duas categorias de entregadores de aplicativos: os motoqueiros e os ciclistas. E consequentemente elas concorrem entre si. Quem tem uma moto recebe mais pedidos, trabalha de uma forma menos exaustiva e, principalmente, consegue ter uma renda maior - às vezes, recebe até o dobro do ciclista. Já o entregador que usa bicicleta, por sua vez, vive uma espécie de paradoxo: por mais que a tecnologia faça a roda do delivery girar, o trabalho dele depende essencialmente da força física. Quanto mais ele pedalar, quanto mais quilômetros percorrer pela cidade, maior será sua remuneração.

Sobre essa remuneração do trabalho destaca-se uma pesquisa realizada sobre o perfil dos entregadores ciclistas por aplicativos na cidade de São Paulo. O entregador ciclista de aplicativo possui as seguintes características: é brasileiro, homem, negro, entre 18 e 22 anos de idade e com ensino médio completo, que estava desempregado e agora trabalha todos os dias da semana, de 9 a 10 horas por dia, com ganho médio mensal de R$ 992,00 (ALIANÇA BIKE, 2019).

 

Tabela 4: Faixas de horas trabalhadas e rendimento mensal

Quantidade de horas trabalhadas por dia

Quantidade de entregadores

Média dos rendimentos mensais

Até 5 horas

19

466,2

De 6 a 8 horas

78

752,9

De 9 a 12 horas

132

1.105,8

Mais de 12 horas

15

995,3

Total Geral

244*

936

*26 entrevistados não responderam o rendimento mensal.

 Fonte: Aliança Bike (2019).

 

Por fim, cabe mencionar que a Reforma trabalhista possibilita que essas situações possam se disseminar, visto que sua prioridade é facilitar a viabilização dos negócios, deixando o trabalhador a mercê de sua própria sorte no mercado, sem alternativas, dado o quadro de crescente desestruturação do mercado de trabalho (KREIN; DE OLIVEIRA, 2019).

 

Autoras:

Patrícia Eveline dos Santos Roncato

Lucélia Ivonete Juliani

Tanise Brandão Bussmann

 

REFERÊNCIAS:

ALIANÇA BIKE. Pesquisa de Perfil dos Entregadores Ciclistas de Aplicativo. São Paulo, Julho de 2019. Disponível em: http://aliancabike.org.br/pesquisa-de-perfil-dos-entregadores-ciclistas-de-aplicativo/; Acessado em : 08/07/2020.

CARNEIRO, I.A. #BrequeDosApps terá nova paralisação de entregadores dia 12 de julho. Disponível em: https://www.tecmundo.com.br/software/154844-brequedosapps-tera-nova-paralisacao-entregadores-dia-12-julho.htm Acessado em : 08/07/2020.

ÉPOCA NEGÓCIOS. Dormir na rua, pedalar 30 km e trabalhar 12 horas por dia: a rotina dos entregadores de aplicativos. Disponível em:  https://epocanegocios.globo.com/Empresa/noticia/2019/05/dormir-na-rua-pedalar-30-km-e-trabalhar-12-horas-por-dia-rotina-dos-entregadores-de-aplicativos.html ; Acessado em : 08/07/2020.

KREIN, J.D.; DE OLIVEIRA, R.V. Os impactos da Reforma nas condições de trabalho. Campinas, SP: Curt Nimuendajú, 2019.

KREIN, J.D.; DE OLIVEIRA, R.V; FILGUEIRAS, V.A. Reforma trabalhista no Brasil: promessas e realidade. Campinas, SP: Curt Nimuendajú, 2019. 222 p.

MARQUESINI, L. #Brequedosapps, o assunto mais falado do Twitter por 5h, rende 37 mil posts. Disponível em: https://www.metropoles.com/brasil/brequedosapps-o-assunto-mais-falado-do-twitter-por-5h-rende-37-mil-posts Acessado em : 08/07/2020.

MELO, S.N. Trabalhadores de Aplicativos e Direito à Saúde em tempos de Coronavírus. Cap 3. Livro: O DIREITO DO TRABALHO NA CRISE DA COVID-19. 2020

 

 

 

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