Os Custos dos Alimentos na Visão da Produção Sustentável
A contemporaneidade, pela evolução do sistema capitalista, pelo aumento da consciência ambiental e pela busca de uma forma de desenvolvimento mais sustentável, nos expõe a necessidade de pensar sobre a produção de alimentos e sobre os custos diretos e indiretos envolvidos no processo de produção e de consumo destes alimentos.
Numa abordagem mais clássica, que pressupõe simetria de informações e racionalidade dos agentes econômicos, tem-se que o preço de mercado de um produto acaba por incorporar todos os custos envolvidos neste processo. No entanto, o avanço da própria ciência econômica neoclássica irá incorporar as falhas de mercado em sua análise, dentre as quais estão a assimetria de informação entre os agentes e as externalidades negativas (que englobam os custos que não foram incorporados no preço final do bem). Neste contexto, ao se considerar os custos de produção de alimentos, torna-se necessário ampliar o escopo do que normalmente chamamos de custo de produção e observar o processo de forma mais sistêmica. Podemos considerar os custos de produção de alimentos na lógica da sustentabilidade envolvendo então os custos ambientais, custos sociais e custos econômicos. Este texto tem por objetivo abordar cada um destes custos indicando, ao final, o relevante papel da sociedade na determinação da importância de cada um deles para as tomadas de decisão relacionadas ao consumo e à produção.
Os Custos Econômicos
Na abordagem econômica, o custo de produção é definido como um gasto feito para se produzir algo, desde os insumos até as atividades relativas à produção e distribuição, assim como manutenção de máquinas e equipamentos necessários. Neste custo está a contabilização de todos os recursos e insumos usados para produzir o alimento, ao longo das cadeias produtivas. Entram aí o custo de uso da terra, adubos (orgânicos ou químicos), sementes, hora homem, hora máquina, custos de transformação (no caso de alimentos industrializados), custo de embalagem, transporte, distribuição e comercialização (tanto do atacado e do varejo). Por exemplo, para produzir uma geléia de laranja, preciso da fruta, do açúcar e outras especiarias, preciso da energia necessária para a transformação, embalagem, etiquetas de identificação. Preciso ainda das horas de trabalho envolvidas tanto na produção da fruta, quanto na sua transformação em geléia e embalagem. Também é necessário considerar a necessidade de manutenção dos equipamentos envolvidos no processo e das atividades necessárias para que este produto chegue até seu consumidor.
É uma abordagem técnica e objetiva do que é necessário para se produzir o alimento. Quando inserida no contexto contemporâneo pode ser entendida como uma visão parcial e pouco complexa, mas que orienta (ou vinha orientando) predominantemente o setor agroindustrial. É neste ambiente que ocorrem aumentos de produtividade e redução de custos de produção e onde se tem espaço para inovações que podem contribuir para a redução dos custos sociais e ambientais, os quais eram negligenciados ou não contabilizados até pouco tempo atrás. Os custos sociais e ambientais da produção de alimentos entram em evidência a partir de três avanços principais: os avanços do conhecimento sobre os impactos humanos sobre o meio ambiente, o avanço do conhecimento sobre os impactos sociais da degradação ambiental e avanço do conhecimento dos impactos sobre a saúde humana causados pelo empobrecimento da qualidade do alimento. Estes custos parecem ser mais complexos e profundos do que os custos econômicos de produção e deveriam ser levados em consideração sempre que se pensa na produção e segurança do alimento.
Aqueles que pensam que a sustentabilidade está vinculada somente à questão ambiental não conseguem ver o sistema como um todo, apenas observam uma parte do mesmo. Assim como uma mão não se explica por um de seus dedos, a sustentabilidade também não se explica somente pelo esverdeamento dos ambientes onde vivemos. O pilar do ambiente aporta uma quantidade de variáveis tácitas que ajudam a começar a desenhar a situação dos custos “escondidos”. É o que veremos na próxima seção.
Os Custos Ambientais
Podemos intuir que o custo ambiental deveria ser composto pela mensuração da contribuição dada pelo meio ambiente para que o processo produtivo ocorra. Trocando em miúdos: o plantio de alface deveria considerar como custo a terra, a água, o ar, e a biodiversidade do local onde a mesma é produzida. Parece lógico! Parece? Mas se analisarmos com detalhe o custo econômico de uma fazenda produtora de alfaces será que encontraremos um indicador na sua contabilidade que contemple os custos da contaminação da água? Ou custos do empobrecimento da terra? Ou ainda o custo da perda de biodiversidade do campo? Ou talvez o custo da morte das abelhas? Porque parece utópico considerar tais custos?
Francis Bacon, um filósofo muito usado para dar base ao pensamento contemporâneo afirmou algo como “o homem moderno precisa aprender a dominar a natureza e extrair dela suas melhores qualidades para que a vida seja melhor”. Este pensamento poderia explicar uma parte do problema já que ao dominar a natureza passamos a desconsiderar seu papel no sistema produtivo. Nesta visão, a natureza só tem valor no que tange aquilo que podemos quantificar. Por exemplo, o preço da terra, o quanto gastamos de água, ou custo da terra parada. Mas e os outros custos? Aqueles relacionados a contaminação da água, empobrecimento da terra, perda de biodiversidade, extinção de espécies vivas? Estes custos são chamados, dentro da economia, de externalidades. Externalidades são todas as variáveis não consideradas como custos dos processos produtivos mas que, no entanto, impactam as diferentes dimensões da vida no planeta causando um custo social ou ambiental que não se reflete no preço do bem ou do serviço gerado. Algumas medidas são tomadas, ao longo do tempo, via regulação, para internalizar nos custos de produção este tipo de impacto. No entanto, muito ainda precisa ser feito para que se consiga definir o exato custo ambiental da produção de um bem ou serviço, de modo que ele se reflita no preço..
Outra forma de analisar os custos de produção de alimentos está na observação do impacto do processo produtivo sobre os equilíbrios e serviços ecossistêmicos providos pela natureza. Está relacionado com o anterior, mas observa outro nível de impacto. Por exemplo, quem avalia o custo real de se derrubar uma floresta para substituí-la por pastagem, produção de soja ou de cana-de-açúcar e, com isso, comprometer todo o regime de chuvas do Sul e Sudeste brasileiro, além de mudar o regime de chuvas no Chile, Paraguai, Uruguai e Argentina. Lembrando que o comprometimento do regime de chuvas tem como impacto real a redução do potencial agrícola dessas regiões do mundo.
Para além do regime de chuvas, a substituição de floresta por pastagem ou por uma outra produção agrícola, é uma visão míope de que a floresta só tem valor pela madeira que gera ou pela terra que a suporta. Não entra nesta avaliação equivocada de valor a biodiversidade, a produção que esta biodiversidade pode gerar e que pode viabilizar movimentação econômica relevante de outro tipo, que não a gerada pelas produções tradicionais. Não entra nesta avaliação o custo do comprometimento do equilíbrio ecológico e do cerceamento dos serviços ecossistêmicos que a floresta presta para o planeta, estando preservada (esse tipo de análise serve para qualquer tipo de bioma). Por exemplo: um estudo feito sobre as produções da biodiversidade amazônica, a partir do manejo sustentável da floresta, explorando alimentos e produtos da biodiversidade, indica que a produção de açaí gera 10 vezes mais receita por hectare do que a conseguida com a produção pecuária extensiva. Ou seja, mesmo analisada por um viés econômico, a floresta se mostra mais valiosa em pé do que derrubada.
Assim, pensar na produção de alimentos precisa considerar o custo ambiental da expansão de certos modelos agropecuários. Neste sentido, podemos pensar numa questão local: qual o custo para a agricultura familiar e para a produção vitivinícola, do uso de defensivos agrícolas típicos da monocultura de soja? É altíssimo, pois compromete o que se quer produzir organicamente, uma vez que os defensivos derivam pelo ar, por até 40 Km, e se depositam na água, no solo e nas plantas. Em alguns casos têm implicado na perda de plantio, como é o caso da uva, que sofre com o defensivo a ponto das videiras morrerem por conta do veneno. Fica ainda mais grave quando pensamos que insetos polinizadores estão sendo dizimados dentro desta lógica e que este fato tem impacto direto na redução de produtividade de várias culturas locais. Neste sentido, o custo da recuperação ambiental e da recuperação das demais produções perdidas por causa da produção de soja, deveria entrar no seu cálculo de custo de produção, o que provavelmente mostraria a sua inviabilidade econômica na Campanha Gaúcha, por conta das externalidades negativas que têm gerado.
Na nossa região outro custo externalizado do processo de produção de alimentos, principalmente as commodities agrícolas, como a soja, ou o milho, é o custo de contaminação do aquífero guarani. O aquífero recolhe água da chuva, dado que temos um solo que se deixa permear, filtrando a água e permitindo que ela fique guardada em um grande lago subterrâneo. É de conhecimento público a qualidade da água que brota da terra na nossa região. Além do mais, a quantidade de água disponível é invejada por outras regiões do planeta. Mas a contaminação causada pela agricultura e seus defensivos agrícolas, assim como pelos lixões que acumulam materiais contaminantes, podem causar danos a esta água, quando se encontram perto de áreas onde há a recarga do aquífero.
No livro Economia Ambiental, os autores apontam que existem dois tipos de contaminação da água: uma se chama fonte pontual e se refere a uma ponto único e identificável de poluentes das águas; o outro se chama fonte não pontual onde a poluição não pode ser direcionada a apenas um fatores, mas sim chega de maneira difusa e indireta abrangendo áreas onde a água tem seus reservatórios e mananciais. As fontes pontuais normalmente são cuidadas com estações públicas de tratamento de água, ou resíduos tratados de rejeitos industriais. Mas na cultura de alimentos, os resíduos contaminantes que são aplicados nas plantas, podem ser lavados pelas águas das chuvas e levados para rios e reservas subterrâneas, tornando-se uma fonte não pontual de contaminação. Muito embora não haja estudos que apontem com precisão se esta contaminação já ocorre, a teoria nos diz que existe grande possibilidade de que sim.
Cabe salientar que, na média, cada tonelada de grão que é cultivado atualmente requer mil toneladas de água, sendo que isto equivale a quase ¾ do uso da água doce do planeta. os lençóis freáticos, se não cuidados, podem ser esvaziados mais rápido que a natureza pode repor. Por último, em relação à água cabe lembrar, que ao contrário das fontes de energia ou de fertilizantes, não se tem qualquer fonte alternativa. Ela é única. Mas quem controla e fiscaliza estas atividades poluidoras? E como são considerados os custos desta contaminação? Como valorar e como considerar tais variáveis nas contas de produção de alimentos? Como não vemos e não sabemos, pensamos que estes custos não existem. E ingenuamente não consideramos eles nos preços baratos dos alimentos.
Os Custos Sociais
Em relação aos custos sociais, para fins deste texto, serão considerados dois aspectos principais: 1. As perdas ocasionadas pela padronização massiva da produção alimentar e o ultraprocessamento do alimento, os quais impactam diretamente na saúde dos indivíduos; 2. As perdas culturais provocadas pela substituição de alimentos históricos e culturalmente densos, por outros vindos de um ambiente onde o alimento deixa de ser cultura ou história e passa a ser algo vazio de sentido e de nutrientes.
Sobre o ultraprocessamento do alimento, muito se discute acerca do impacto destes na perda de saúde dos indivíduos. Isso é consequência direta do excesso de sal, açúcar, óleos e gorduras, além de substâncias de uso exclusivamente industrial presentes em sua composição. Mas porque tem muito sal ou açúcar, ou outro elemento nocivo nos alimentos atualmente? A resposta é um encadeamento de fatores que se justificam para manter baixo o custo econômico da produção, para permitir o aumento da escala da produção e ampliar o tempo de armazenagem do alimento. Assim as imensas cadeias de distribuição conseguem maior rentabilidade nos alimentos que oferecem para seus clientes. Os grandes varejistas buscam preços baixos, porque este é um padrão competitivo importante do setor. Para conseguir isso, incentivam a melhora na produtividade e eficiência máxima nos processos de produção de seus fornecedores. Para os todos os produtos não-alimentares, as técnicas produtivas de melhorias de eficiência são bem vindas: padronização, tecnologia, diminuição de retrabalho, baixo contato humano, produção em escala, entre outras ferramentas de gestão da produção. Mas quando nos referimos a produção de alimentos esta lógica fica distorcida. E as externalidades emergem com força. Mas outros elementos precisam ajudar a guiar a produção alimentar e esforços vêm sendo feitos neste sentido, como é o caso do Guia Alimentar da Produção Brasileira.
De acordo com o Guia Alimentar da População Brasileira, os alimentos ultraprocessados deveriam ser evitados, pois "são nutricionalmente desbalanceados [...] tendem a ser consumidos em excesso e a substituir alimentos in natura ou minimamente processados". Ainda de acordo com o guia, este tipo de alimento possui poucos ingredientes in natura ou minimamente processados e usam tecnologia e substâncias para alongar sua duração e incrementar cor, sabor, aroma e textura. Pode-se dizer que parece alimento, mas não é alimento de verdade. Como consequência, tem-se, em especial, a perda de saúde na sociedade contemporânea. Por exemplo, a presença de obesidade crônica em vários países desenvolvidos vem sendo associada ao consumo excessivo de ultraprocessados, além de aumento do sedentarismo entre as pessoas.
O Guia Alimentar ainda sinaliza que "as formas de produção, distribuição, comercialização e consumo afetam de modo desfavorável a cultura, a vida social e o meio ambiente". A modernidade traz consigo uma aceleração dos tempos individuais e coletivos. Em grandes centros torna-se cada vez mais difícil fazer uma refeição ao lado da família, refeição que é substituída por fast food e alimentos ultraprocessados, geralmente por necessidade. Os tempos de preparo e consumo do alimento, como rotina familiar, que contam várias histórias, através de várias receitas, que passam de pais para filhos, acabam substituídas por um almoço na praça de alimentação de um shopping (na melhor das hipóteses, num restaurante). Alimentar-se de comidinha caseira, em família, pode ser considerado, hoje, um privilégio que poucos desfrutam. Vale ainda pensar que os alimentos ultraprocessados consomem massivamente insumos que pressionam o meio ambiente, uma vez que a produção em escala é geralmente monocultural, geneticamente modificada e associada a um grande número de defensivos agrícolas, geralmente prejudiciais à fauna e à flora das regiões de produção.
Neste contexto ainda se inserem as perdas culturais associadas ao consumo de alimentos padronizados. Por um lado, perde-se a diversificação alimentar, tão associada a práticas nutricionais saudáveis, inclusive por falta de acesso a alimentos diversificados in natura (cenouras, tomates, milho, são bons exemplos de alimentos que foram padronizados ao longo do tempo e cuja atual disponibilidade de sementes e sistemática de produção acabam por bloquear o desenvolvimento de produção e consumo de variedades outras de sua própria espécie). Por outro, talvez se perca de vista a importância cultural que as práticas culinárias possuem: DELLA GIUSTINA (2009) diz que "a identidade, o sabor e o saber fazer qualificam a culinária como patrimônio imaterial de uma cultura, e a manifestação da memória e da história numa atividade tida como corriqueira, mas que é de fácil percepção e entendimento como parte do passado". Mesmo em nossas histórias pessoais podemos resgatar memórias importantes associadas ao alimentar-se em família. Esta é a lembrança de uma de nós autoras: "quando viajávamos de SC para o RS para visitar meus avós paternos, tínhamos certeza que seríamos recebidos com uma galinhada e salada de maionese e que teria cuca de uvas guardada em algum dos fornos que minha avó usava para fazer suas delícias. Nunca vou esquecer o dia que meu pai, emocionado durante um café da tarde, me olha e diz: "a cuca que você fez está igual a que a mãe fazia" (minha avó tinha falecido há algum tempo, mas sua memória permaneceu, inclusive nas receitas que herdei do seu caderninho escrito a mão, um pouco em português, um pouco em alemão e que agora vão, aos poucos, sendo ensinadas para minha filha)".
É neste ambiente, de maior complexidade na percepção dos custos da produção do alimento, que vai surgir um movimento social relevante, chamado ativismo alimentar. Tal movimento se debruça sobre "questões que vão além da comida e que complexificam a relação do ser humano com os outros reinos da natureza" (AZEVEDO, 2017). O mesmo surge como um guarda-chuva interdisciplinar, abrigando diferentes movimentos e discussões nos quais a comida surge como elemento transversal, dentre os quais podemos citar: a Agroecologia e a Agricultura Familiar; o movimento de Segurança Alimentar e Nutricional; a Agricultura Orgânica e outros sistemas agroalimentares sustentáveis (Permacultura, Agriculturas Biodinâmica, Natural, Ecológica); o Comércio Justo (Fair Trade); o Slow Food; o Locavorismo; o Vegetarianismo; o Veganismo; entre outros.
O papel da sociedade e de suas escolhas
Neste contexto, a forma como as sociedades fazem suas escolhas alimentares tem um papel fundamental para a orientação do sistema produtivo. Se as escolhas priorizam a diversidade, a produção ambientalmente equilibrada e socialmente responsável, para além do preço final do alimento, então as estruturas produtivas tendem a valorar de forma mais complexa seus custos de produção, orientando seus processos no sentido sinalizado pela sociedade.
Um exemplo: estamos escrevendo este texto na temporada de pêssegos, novembro, hemisfério sul. Como consequência de um bom manejo agroecológico dos pomares, as árvores produziram muitas frutas neste ano. No campo é comum pensar em processar esta fruta para armazenar de forma que estejam disponíveis para consumo no período entre as safras, quando a mesma já não está disponível para ser colhida no pé. O processamento artesanal traz consigo a necessidade de maior tempo de dedicação e a escolha de insumos viáveis para o uso artesanal. Isso implicará no custo econômico da produção deste alimento, fazendo com que a produção artesanal tenda a ser mais cara do que a produção industrial. Importante destacar que a diferença nos custos industriais e artesanais se dão também pelas características adotadas no processo de industrialização. Provavelmente você já se perguntou como são descascados os lindos pêssegos que vem dentro das latas de conserva. Explicação direto da página da Embrapa:
Esta operação deve ser realizada imediatamente após o descaroçamento para evitar o escurecimento (oxidação) da polpa no local onde se retirou o caroço. Esta operação é feita em pelador do tipo cascata, embora algumas indústrias ainda utilizem o pelador de imersão. No pelador em cascata, as metades de pêssego são conduzidas horizontalmente por esteira para dentro de uma câmara, viradas na posição côncava (com a pele para cima). Este equipamento consiste de dois compartimentos: no primeiro a solução de soda cáustica a alta temperatura é distribuída sobre as metades, através de calhas que formam diversas cascatas encadeadas. O tempo de permanência das metades sob os jorros de soda cáustica é de aproximadamente um minuto. Após, em outro compartimento, as metades de pêssegos passam entre serpentinas de vapor que aceleram a reação da casca com a soda. A concentração ideal de soda está em torno de 4%, embora seja usual as indústrias usarem de 10 a 15%, devido ao baixo grau de qualidade da soda comercial, geralmente com alto teor de impurezas e de umidade; embora se tenha conhecimento de que altas concentrações de soda, combinadas com tempos e temperaturas elevados, podem causar grandes perdas no descascamento. Outra razão para aumentar a concentração é a falta de uniformidade na maturação da fruta. Frutas meio verdes necessitam de maior tempo e/ou concentração de soda, para uma completa remoção da casca.
Sim, você leu certo, é usada soda para descascá-los! Saber desta informação nos faz pensar nossas escolhas. Ou no mínimo se espantar ao saber do uso da soda cáustica na fruta que eu consumo bem baratinha, como pode?… O ato de escolher nossos alimentos deveria ser pensado de forma mais ampla. Deveria estar entre nossas preocupações entender como este alimento barato chega até nós. Qualquer dúvida que surja no meio deste caminho já ajudaria a entender o preço com que o mesmo é ofertado nas gôndolas dos supermercados.
Para responder ao argumento de que a industrialização dos alimentos dá oportunidade a que mais pessoas tenham acesso a diferentes alimentos, se contrapõe a consideração de que estatisticamente já é comprovado que somos hoje uma população com problemas de sobrepeso. Tal problema é causado principalmente pelo excesso de calorias vazias disponíveis nos alimentos de baixos preços. A população mundial saiu da subnutrição para a supernutrição. Torna-se uma questão de saúde pública buscarmos um equilíbrio alimentar. Também no pensar sobre os processos de produção e distribuição do alimento, podemos encontrar respostas para a questão da fome que assola diversas populações no mundo. Dados da ONU indicam o tamanho da fome mundial, ao mesmo tempo que indicam os desperdícios de alimentos que fazemos: "Hoje, no mesmo planeta onde cerca de 821 milhões de pessoas sofrem de desnutrição crónica, 30% de todos os alimentos produzidos acabam por ser desperdiçados. A fome continua a aumentar em algumas regiões do mundo e, mesmo assim, 1,3 mil milhões de toneladas de comida por ano vão parar ao lixo" (ONU, 2019). Isso acontece num espaço onde estratégias institucionais pressionam a distribuição, as políticas de protecionismo, os interesses de submissão de culturas, os mercados eficientes, entre outros agentes, formando barreiras para que a produção de alimentos chegue de forma harmônica a todos.
Quando consideramos os custos econômicos, sociais e ambientais da produção do alimento, de forma combinada, pensar a produção do alimento é mais do que redução de custo e aumento de produtividade. É pensar em como se alimenta o mundo sem se perder a noção de que os seres humanos são parte do ecossistema e não donos dele. É pensar-se em como é necessário considerar-se história, cultura e saber dos povos de cada local, os quais acabam por contribuir para a preservação da história, da cultura e dos ecossistemas, a partir de uma visão de equilíbrio e simbiose.
No entanto, é certo que esta mesma estrutura que produz um alimento de custo baixo, mas frágil em nutrientes e carente de sentido cultural também produz um indivíduo alijado do processo de escolha do que lhe alimenta. Baixas rendas e salários obrigam as pessoas a escolherem seu alimento exclusivamente pelo preço (ou seja, na verdade elas não têm escolha). Turnos de trabalho exaustivos e grandes deslocamentos urbanos entre o espaço de residência e o espaço de trabalho obrigam à escolha de alimentos menos saudáveis (feliz daquele que ainda pode contar com um prato feito ou com uma boa marmita de arroz, feijão e carne). A contemporaneidade trouxe consigo uma grande sensação de aceleração do tempo e com ela a perda de qualidade de vida em vários aspectos, inclusive os alimentares. Pensar em desenvolvimento hoje exige pensar em novas formas de produzir, de trabalhar, de viver. Olhando para o foco de nossa argumentação, parece que é cada vez mais necessário lutar para preservar a ideia de que o alimento precisa nutrir o corpo, mas também precisa nutrir a alma e a convivência. É possível sentir uma imensa alegria quando se pode colher de um vaso da janela de casa o alecrim que perfuma o assado, ou quando se pode ensinar a um filho, a receita herdada da avó, ou se pode resgatar o processo de fermentação do pão e criar seu próprio fermento, ou se pode passar horas ao lado do esposo preparando a refeição que reúne a família e a alimenta de nutrientes e afeto. E essas sensações e memórias não tem preço.
Autoras
Keli Pereira de Oliveira
Debora Nayar Hoff
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